A Lei dos Pobres de 1601 e as Similaridades com o Assistencialismo nos Dias Atuais

Autoria por Jessica Hubner, presidente da ANAPRI.

Revisado por Elaine S. da Luz, coordenadora de redação da ANAPRI.

A Lei dos Pobres foi a primeira lei assistencialista, criada em 1601, na Inglaterra. Baseava-se nos princípios de que era encargo das administrações paroquiais zelar pelos pobres desamparados, empregando os sadios e subsidiando a existência dos invalidados para o trabalho. As paróquias eram definidas como unidades administrativas autônomas no que diz respeito à prestação de socorro aos pobres, conferindo às autoridades locais poderes para coletar impostos compulsórios entre os contribuintes paroquianos com a finalidade de financiar essas atividades. O Ato de Assentamento de 1662 decretou que apenas pobres devidamente “assentados” em uma paróquia poderiam ser socorridos por ela. A condição de assentado era obtida por nascimento na paróquia, matrimônio com um paroquiano ou ao se residir por lá durante um período pré-estabelecido de tempo. Seu objetivo era evitar que multidões empobrecidas vagassem rumo às paróquias mais ricas em busca de auxílio.

Essa lei sofreu vários ataques contra seu funcionamento, principalmente no século XVIII, devido ao gasto público que ela representava. A campanha negativa contra o assistencialismo se tornou mais forte em 1834 com o Ato de Reforma que, sob o pretexto da austeridade das contas públicas e da moralização dos pobres, instituiu uma legislação muito mais baseada na vigilância, internação e no controle social dos pobres, sob a forma da Nova Lei dos Pobres.

Embora a Lei dos Pobres tenha sido criada como uma resposta para os problemas sociais inerentes às contradições do avanço das relações capitalistas na Inglaterra, para o liberalismo ela era vista como uma referência para apontar os efeitos negativos da noção do direito de subsistência como obstáculo ao laissez-faire, retratando como um empecilho no caminho do livre mercado.

Para Smith, todos os homens possuem um desejo pela prosperidade, que se manifestava entre os trabalhadores pela prontidão em abraçar avanços que elevassem sua produtividade e, consequentemente, seus salários. O uso positivo do interesse pessoal estava ao alcance de todos e não representava mais um privilégio elitista. Mas, para que esse potencial comum a todos fosse aproveitado, era necessário que o mercado atuasse com liberdade, e a Lei dos Pobres aparecia entre as intervenções arbitrárias que atravancavam o funcionamento do laissez-faire. O principal problema era o Ato de Assentamento, que, em sua visão, impedia a livre circulação de mão de obra, prendendo trabalho ocioso em paróquias onde não havia utilidade para ele e impedindo que este escorresse para onde havia demanda.

Para outros pensadores da época, a pobreza era algo natural, pois a necessidade da existência dos pobres era para fazer trabalhos cujas pessoas pertencentes a estratos mais altos não eram tolhidas para a labuta dura e ofícios perigosos. Defendiam que oficinas fossem montadas pelas paróquias, onde os desamparados pudessem ter acesso aos materiais para trabalhar, sem receber abrigo ou comida, pois estes deveriam ser adquiridos com o resultado do trabalho.

Para Ricardo, a Lei dos Pobres, ao invés de enriquecer os pobres, empobrecia os ricos, dragando recursos dos contribuintes em uma escala sem fim do aumento das despesas.

As guerras contra a França Revolucionária causaram um aumento no preço dos produtos, principalmente agrícolas, piorando ainda mais a situação dos mais pobres, fazendo assim, um aumento nos pedidos de auxílio.

Após a guerra, temos o surgimento do Utilitarismo, e com ele, as reformas parlamentaristas e o surgimento de novas classes. Em 1832, o médico Phillips James Kay-Shuttleworth publicou “A Condição Moral e Física das Classes Trabalhadoras Empregadas na Manufatura de Algodão em Manchester”, no qual ele relata a condição dos operários de um dos principais polos industriais do país. Ele defendia que o sistema fabril e o laissez-faire eram sinônimos de civilização e riqueza material, e com isso retoma antigos argumentos contra a Lei dos Pobres para explicar a miséria humana concentrada nos centros manufatureiros. Pois somente causas externas poderiam influenciar no bom funcionamento dessa tríade, com isso, a assistência paroquial se destacava negativamente. Para ele, a ajuda da paróquia fortalece a ideia de que viver à custa da paróquia havia se convertido em um modo de vida muito mais convidativo do que o trabalho honesto.

Em 1832, o parlamento nomeia uma comissão pública para inquirir sobre o funcionamento da Lei dos Pobres em toda a Inglaterra e País de Gales, bem como levantar propostas para interromper a escalada de gastos. O relatório trazia em suas páginas afirmações antigas de que essa prática pervertia a ordem natural da economia e minava o espírito de trabalho e moralidade da gente comum, e, indignava a comissão a existência do que interpretavam como uma cultura generalizada de concessão de esmolas. Na parte final do relatório, havia um punhado de recomendações para a realização de uma reforma geral no assistencialismo. O parlamento prontamente acatou todas as recomendações principais do relatório, que serviram de base para a elaboração do Ato de Reforma de 1834, fundando o que passou a ser conhecido como a Nova Lei dos Pobres.

Ao analisar todo o contexto histórico, podemos nos remeter aos dias de hoje e usar como exemplo alguns auxílios sociais existentes no Brasil que são extremamente criticados pela parcela pertencente às classes mais altas e, também, pela parcela da população que se deixa alienar ao invés de buscar informações. O Bolsa Família, hoje substituído pelo Auxílio Brasil, foi criado em 2003 durante o mandato de Luiz Inácio Lula da Silva e tornou-se lei no ano seguinte. O programa tinha como público-alvo todas as famílias com renda por pessoa de até R$ 89 por mês, consideradas em situação de extrema pobreza, ou com renda máxima de R$ 178 mensais com crianças ou adolescentes de até 17 anos. Tinha como condicionantes a permanência das crianças na escola, acompanhamento de gestantes e a vacinação em dia. Teve como objetivo “quebrar o ciclo geracional da pobreza”, ou seja, a tendência de que os filhos de pessoas pobres acabem vivendo na mesma pobreza que os pais.

Segundo um estudo publicado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 2019, constatou-se o resultado positivo do programa em tirar as famílias da pobreza e pobreza extrema. A pesquisa de 2017 mostrou que mais de 3,4 milhões de pessoas haviam deixado a linha de pobreza extrema e 3,2 milhões passaram acima da linha da pobreza graças ao programa. Ainda assim, os pesquisadores alertavam que 64% dos beneficiários continuavam em situação de extrema pobreza, devido ao baixo valor do benefício, que, em 2017, era em média de R$ 180 e, atualmente, passados quatro anos e muita inflação, ainda estava em R$ 190.

Durante sua existência, o programa recebeu diversas críticas, alegando ser um auxílio para formar “vagabundos encostados no governo”, e que o mesmo desestimularia as pessoas na busca de empregos, tal qual as críticas feitas sobre a Lei dos Pobres no século XVII.

Com isso, podemos concluir que políticas públicas em prol da assistência na garantia da subsistência, ainda, são mal vistas e extremamente criticadas pelo sistema capitalista liberal até os dias de hoje. Acredita-se que o assistencialismo faz com que a mão de obra se torne escassa e os salários não possam ser tão baixos. Além disso, a ideia de pessoas na miséria traz consigo as consequências causadas por esse sistema econômico desigual, no qual tenta-se apenas mostrar seus sucessos como forma de continuidade do mesmo.

Referências

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Estudo revela impacto positivo do Bolsa Família. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2019.

KAY-SHUTTLEWORTH, Phillips James. A Condição Moral e Física das Classes Trabalhadoras Empregadas na Manufatura de Algodão em Manchester. 1832.

RICARDO, David. Princípios de Economia Política e Tributação. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

BRASIL. Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Institui o Programa Bolsa Família e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 jan. 2004. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm. Acesso em: 1 ago. 2024.

BRASIL. Ministério da Cidadania. Relatório de Informações Sociais 2020. Brasília: Ministério da Cidadania, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/bolsa-familia/relatorios. Acesso em: 1 ago. 2024.

 

Sobre a autora: Formanda em Relações Internacionais pela UNINTER, foi bolsista PIBIC no projeto “Direitos Humanos na era digital”, Presidente da ANAPRI, pesquisadora sobre gênero e direitos humanos, membro do grupo de pesquisa Mulheres acadêmicas de Relações Internacionais e Ativismo Social da Universidade de Brasília (MARIAS-UnB) e atuante, também, como membro do corpo institucional, atuante na área de Relações Governamentais e Gestão de Projetos Internacionais.